Provavelmente a primeira coisa que vem a cabeça quando se fala de Voltaire é sua eterna frase que já virou citação clássica de Facebook (Clarice Lispector não curtiu isto): ”posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-lo”. Nesse momento ocorre uma atração momentânea, porém, ao mesmo tempo, o cérebro já começa a emitir um alerta vermelho de chatice infinita, principalmente se o seu interlocutor costuma dar uma de sabichão fazendo a citação em Francês.
Apesar disso, há mais profundidade na literatura clássica do que o senso comum nos permite enxergar primordialmente. Voltaire era, além de um grande erudito e libertário, um eterno zuão. Expressava suas concepções com fina ironia, sem abandonar o sarcasmo.
Focarei minha lambeção de saco em ”Cândido”, uma das obras mais conhecidas de Voltaire. O texto, apesar de ter sido publicado em 1759, em um contexto tão remoto e oposto à contemporaneidade, contrapõe diversas destrezas desse ser racional chamando humano, como por exemplo a ingenuidade e a esperteza, o desprendimento e a ganância, a caridade e o egoísmo, a delicadeza e a violência, o amor e o ódio. Tudo isso misturado com discussões filosóficas sobre causas e efeitos, razão e ética, levando a priori as decepções individuais que os personagens sofrem a partir do momento em que saem – ou são jogados para fora – da ”bolha” para a realidade que chamamos de vida.
Conhecer um pouco mais dessa característica idealizada, porém não longe da realidade, sobre seres que viveram há quase três séculos atrás e perceber que ainda existe muito neles que fala diretamente conosco, mulheres e homens modernos, perdidos no século XXI, é o melhor motivo para se deleitar em sua obra. Ademais, abstenho das minhas palavras e apresento três pedaços que particularmente chamaram a minha atenção em Cândido.
”Duas lindas criadinhas, muito asseadas, serviram chocolate bem espumado. Cândido não pôde deixar de lhes louvar a beleza e amabilidade.
– São excelentes criaturas – disse o senador Pococurante. – Levo-as às vezes para o meu leito, pois já estou farto das damas da cidade, das suas mesquinhezas, do seu orgulho, das suas tolices, e dos sonetos que é preciso fazer ou encomendar para elas. Mas, afinal de contas, essas duas raparigas começam a aborrecer-me.”
Palavras de um senador conhecedor do mundo, além de intelectual invejável e crítico provido de uma biblioteca chatice nível master (brimks rs).
”Pois haverá coisa mais tola do que carregar continuamente um fardo que sempre se quer lançar por terra? Ter horror à própria existência e apegar-se a ela. Acariciar, enfim, a serpente que nos devora, até que nos haja engolido o coração?”
Palavras de uma velha senhora, que foi filha de um papa e que após sofrer com a acerbidade da vida, demonstra um pouco do que aprendeu com isso, além de seu pouco apreço as suas raízes.
”- Pois bem! meu caro Pangloss – disse Cândido, – enquanto eras enforcado, dissecado, espancado e remavas nas galeras, sempre achavas que tudo ia o melhor possível?
Mantenho a minha primitiva opinião – respondeu Pangloss, – pois afinal sou filósofo: não me convém desfazer-me (…) e a harmonia preestabelecida é a mais bela coisa do mundo, bem como o todo e a matéria sutil.”
Diálogo de Cândido, um eterno ingênuo que vê no otimista Pangloss um sábio-mor.
Paro por aqui. E espero ter atingido meu objetivo com poucos trechos. A obra é extensa, com riqueza de detalhes, de fácil leitura e logo, pouco tediosa.